terça-feira, 28 de outubro de 2014

A Alma da Romiseta

José Antonio Martino


         Como eles eram sempre pontuais, já não marcávamos o final do nosso joguinho de biriba pelo relógio, mas pelo horário em que começavam a gritaria e o quebra-quebra. Toda noite era a mesma coisa. Nós, velhinhas do terceiro andar, começávamos a jogar por volta das sete horas, após termos jantado a nutritiva canja de aipim que a Gertrudes preparava com tanto esmero. Depois, sentávamos à mesa para jogar e falar mal do próximo até a hora em que o marido retornava ao lar e as brigas recomeçavam. O jovem casal morava no apartamento de cima ao nosso e penso que o distinto mancebo não deixava de ter certa razão em ralhar com a esposa, porque todas nós sabíamos que ela costumava receber muita visita masculina quando seu venerável marido se encontrava ausente, mas isso não é da nossa conta.
            O fato é que o moço chegava de suas farras toda noite meio bêbado e, após abrir a porta do apartamento violentamente, gritava para todo prédio escutar:
- Matilda, tô sentindo cheiro de homem!
Era quando recolhíamos nosso baralho e começávamos a nos despedir.
Então vinham todos aqueles nomes pouco elegantes para se dizer a uma dama e as portas batiam e as coisas quebravam muito naturalmente até que um silêncio lascivo parecia dominar tudo e as estrelas piscavam vermelhas no céu excitado.
            A tal Matilda mantinha numa estante da sala um velho ferro de passar roupa, que funcionava com brasas, creio que de aço ou mesmo de chumbo, pois o cujo era pesado como um diabo gordo. Aparentemente, o ferro servia de vaso, pois ela lhe metia dentro umas plantinhas murchas, mas o bibelô era menos enfeite do que arma. Quando o marido avançava furibundo contra ela, a boa senhorinha apanhava o ferro e o atirava sobre seus cornos, mas fazia isto com tamanha destreza e arte, que procurava sempre errar o alvo, pois o seu intuito era apenas amedrontá-lo. Tinha boa pontaria e a mão tão adestrada, que muitas vezes o ferro passava zunindo nas orelhas do rapaz e em mais de uma oportunidade ele sentiu um ventinho gelado lhe roçando a barba mal feita.
            Um dia, porém, ela errou, ou melhor, acertou em cheio a testa do galhardo varão. O marido só não foi a nocaute, porque era muito cabeça-dura, mas ficou possesso e, cambaleando troncho de cólera, pegou a primeira coisa que achou ao alcance de sua raiva, atirando-a contra a referida consorte que, por estar com sorte, não foi atingida. Eis o que é se encontrar no lugar errado e na hora errada. O que ele apanhara assim às pressas acabou sendo nada mais nada menos do que a infortunada Romiseta, uma velha tartaruga de estimação, que a tudo assistia mui pacatamente, esperando apenas ganhar sua banana diária para se recolher. Porém, a tragédia não parou aí. Quis o destino que a malfadada tartaruga tivesse sua noite de albatroz. Ao se agachar, Matilda ainda pôde ver a pobre Romiseta sair voando pela janela, mas certamente ela não viu a infeliz criatura se espatifando no chão, como nós todas vimos, uma vez que estávamos bisbilhotando na varanda. O miserando quelônio ainda tentou aprender a voar naqueles breves instantes, agitando as perninhas desesperadamente feito asas improvisadas, mas pouco resultado obteve, de maneira que aterrissou com a sutileza de um tijolo.
            A boa notícia é que a bichinha não morreu. Levada às pressas a um veterinário, após exames acurados com direito a raio X e tudo, o diagnóstico indicou que a velha Romiseta havia fraturado internamente a carapaça e, se esta não fosse removida com urgência, a tartaruga morreria em poucos dias, pois uma lasca de seu casco encontrava-se cravada em suas costas feito um punhal. Comido de remorso, o marido não mediu esforços para lhe salvar a vida e mandou vir do estrangeiro um americano, que são os maiores especialistas nestas coisas de tirar o couro dos outros.
            Algumas meses depois, encontrei Matilda na rua, levando Romiseta para um refrescante passeio. Ao vê-la, confesso que melhor seria que a tartaruga tivesse morrido. Estava esquisitíssima! Nosso cão foi lhe cheirar meio de soslaio, temeroso, perguntando-me que diabos seria aquilo, se de comer ou de brincar. Na verdade, a velha Romiseta estava mais para um sapo de pescoço comprido, com pele de lagartixa toda esticada e dorso de chiuaua tosquiado com máquina zero. A bem dizer, lembrava também outra coisa, mas a minha provecta idade e a boa educação já não me permitem comparações desse tipo. O certo é que os olhinhos melancólicos da Romiseta pareciam dizer a todo instante:
            - Matem-me... matem-me...
Em suma, faltava-lhe a alma, que fora arrancada com sua carapaça. Tirem tudo destes pobres animaizinhos, mas não lhe tirem o casco já dizia um antigo sábio toscano, proprietário de famoso restaurante especializado em sopa de tartaruga. 
Foi então que aconteceu. Durante longos dias, ela permanecera admirando o velho ferro enferrujado, como se caraminholasse coisas que somente os cérebros dos quelônios podem compreender. Tanto fez, que levou Matilda a exclamar:
- Esta tartaruga está apaixonada pelo antigo ferro de passar roupa, que fora de minha bisavó!
Não estava. Na primeira oportunidade que teve, Romiseta meteu-se dentro do ferro para nunca mais dele sair. Enfim, sentia-se novamente uma tartaruga, espichando o pescoço feliz pelo buraco que servia para dar saída à fumarada das brasas. Talvez corresse em suas veias a mesma febre inexplicável que picava os cavaleiros medievais em suas armaduras ou quem sabe Romiseta se sentisse como o próprio Davi no corpo de Golias.

            Se pensam que vou terminar este conto dizendo que Romiseta virou uma canja pedaçuda, enganam-se. Ela morreu mesmo foi esturricada, tentando fazer amor com um ferro elétrico, que Matilda comprara numa liquidação.

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